20 de noviembre de 2009

Propriedade urbana e garantia constitucional da propriedade



O assunto que apresenta os maiores problemas de ordem jurídica do direito de propriedade é a tensão dialética existente entre a garantia constitucional do direito de propriedade privada e o significado da função social da propriedade, questão que, tecnicamente, está intimamente ligada as discussões teóricas entre unidade e pluralidade de estatutos de propriedade.
Com efeito o artigo 5º da CF, no caput garante a inviolabilidade do direto à propriedade, junto com os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, nos termos seguintes: XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social. Da mesma forma se proclamam no artigo 170, como princípios da ordem econômica do Brasil, a propriedade privada e a função social da propriedade.
A construção teórica da garantia do direito de propriedade privada deve, necessariamente, partir do modelo dominical definido pelo Código Civil: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (Artigo 1288, caput).
Ninguém deve esquecer que este é o modelo que, apesar das críticas recebidas e, apesar de todas as transformações experimentadas, continua a ser o único molde teórico que permite dotar de conteúdo à garantia institucional do direito de propriedade. Com efeito, não pode haver propriedade privada sem que seja respeitado um conteúdo essencial do direito que compreenda faculdades de usar, gozar e dispor da coisa, como não pode falar-se de propriedade se falta a garantia legal para a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização.
De outro lado, também não podem desconhecer-se as transformações e a relativização que já sofreu o conceito e o regime legal do direito de propriedade ao longo do século XX, particularmente durante a sua segunda metade, até desembocar no reconhecimento e na consagração constitucional da função social da propriedade e, particularmente, da propriedade urbana que, conforme ao § 2º do artigo 182 da CF, cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Neste marco adquire sentido a dicotomia propriedade-propriedades, pois com a regulação especial da política urbana pelo Estatuto da Cidade se cria uma nova disciplina da propriedade imobiliária urbana e da faculdade de edificar que gera corpus normativos próprios a traves dos planos diretores e das leis urbanísticas municipais com uma lógica só baseada na dimensão social e coletiva da cidade e no desenvolvimento e na expansão urbana. Assim sendo pode se falar de uma propriedade urbana ou propriedade urbanística intimamente vinculada à ideia de função social. Com isso, este novo estatuto da propriedade imobiliária, desenvolvido fora do Código Civil e completamente estranho aos princípios que o informam, amparado em sua própria logica e em sua própria nomenclatura, aclamado pelos urbanistas e por reputados doutrinadores, aparta-se claramente do regime geral do direito de propriedade e converte-se num dos principais motores das transformações jurídicas no conceito e no regime jurídico geral e abstrato do direito de propriedade privada. 

Por tanto, ainda que continue a existir um reconhecimento formal da garantia da propriedade privada, que sem lugar a dúvidas também compreende a propriedade privada do solo, e que muitos esquecem voluntaria ou involuntariamente, se estabeleceu uma regulação concreta do aproveitamento dos terrenos urbanos com fins urbanísticos mediante o Estatuto da Cidade e, paralelamente, uma nova e interessante disciplina jurídica, o Direito urbanístico.
Mas ainda que teoricamente seja muito fácil descrever o fenômeno da funcionalização social da propriedade e da propriedade urbana não é tão fácil coordenar essa ideia com a subsistente garantia constitucional da propriedade, nem encontrar soluções a muitos problemas teóricos. Assim, ninguém estuda como garantir o conteúdo essencial do direito de propriedade frente ao poder da Camara Municipal concretado nos dispositivos do plano diretor e das leis urbanísticas municipais; ninguém propõe como determinar que mais-valias têm que ser reconhecidas ao proprietário dos terrenos e cuales têm que reverter à colectividade; ninguém estabelece como respeitar a igualdade formal de todos os proprietários tida conta que a ordenação urbanística incide de forma muito diferente sobre cada prédio; ninguém fala se devem ser indemnizados os proprietários de terrenos destinados a usos de interesse geral ou a fines sociais, e emfim, ninguém se pergunta como evitar que a administração urbanística use o plano diretor o as leis urbanísticas municipais como meio para prejudicar a determinados proprietários de terrenos ou para recompensar a outros mais afines ao poder municipal estatuído.
Não há dúvida que estes problemas, por sua própria natureza, não têm fácil solução. E a solução técnica que oferece a Constituição Federal remetendo a determinação do conteúdo da propriedade urbana ao plano diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, e a necessidade de que as leis municipais de ordenação urbanística respeitem as amplas e pouco concretas diretrizes fixadas no Estatuto da Cidade, deixa sem resolver estes interrogantes. Por isso o nascente Direito urbanístico brasileiro não tem que se conformar com descrever o conteúdo da propriedade urbana, senão também de estudar o conteúdo material e a importância real da garantia institucional da propriedade privada imobiliária. 


Gustavo Tepedino  e Anderson Schreiber









31 de agosto de 2009

Plano diretor para pequenas cidades?



O senador Jefferson Praia (PDT-AM) anunciou em Plenário ter apresentado proposta de emenda à Constituição para que todas as cidades sejam obrigadas a elaborar plano diretor, com planejamento sobre seu crescimento, construção de redes de água potável e de esgotos e de áreas de lazer. Hoje, só as cidades com mais de 20 mil habitantes têm essa obrigatoriedade.
Um plano diretor, aprovado depois de ampla discussão na câmara de vereador, leva a uma melhora na qualidade de vida da população, reduzindo a precariedade das condições urbanas. Por isso, ele considera injusto para os moradores que as pequenas cidades sejam liberadas do plano diretor. Sem esse plano, é comum cidades jogarem esgotos sem tratamento nos rios e riachos, afetando seriamente o meio ambiente. Essas pequenas cidades precisam de pelo menos um plano diretor simplificado.

O senador amazonense lembrou que, na mesma linha, o Conselho das Cidades, ligado ao Ministério das Cidades, baixou uma resolução (nº 34/05) que define as funções sociais das cidades e da propriedade urbana, as quais devem constar do plano diretor. Observou que uma rápida leitura da resolução deixa claro o quanto um plano desses pode melhorar a vida das pessoas.

Uma justificativa teórica 


21 de agosto de 2009

Revisão da Lei do parcelamento do solo urbano



Foi publicada no Diário Oficial da União, edição de 10 de agosto de 2009, a Resolução Recomendada Nº 74 de 2 de julho de 2009 do Conselho das Cidades

A resolução recomenda que o Ministério das Cidades faça gestão junto à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República no sentido de levar ao conhecimento do Congresso Nacional a posição do Conselho das Cidades que considera relevante e urgente a necessidade de revisão da Lei Nº 6.766/1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, mediante emenda substitutiva ao Projeto de Lei nº 3.057/2000 que altera a referida lei, com os 5 pontos consensuados pela Comissão de Acompanhamento e Proposição do PL 3.057/2000.

Os pontos consensuados pela comissão, composta pelos vários segmentos que compõe o Conselho das Cidades, tratam da Infraestrutura Básica, do Parcelamento de Interesse Social, da Intervenção, do Licenciamento e dos Contratos. 


A Resolução nº 74 foi aprovada por todo o Conselho das Cidades em sua última reunião.


Nelson Saule Junier (Org.)




12 de agosto de 2009

Nova regularização fundiária





Sancionada pelo presidente em exercício José Alencar a Lei Federal Nº 11.977 de 7 de julho de 2009, dispõe sobre o “Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV” e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas;
altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941; as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001; e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001 e dá outras providências.
A nova lei se divide em três partes. A primeira refere-se diretamente ao Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, cujo objetivo é criar uma série de mecanismos para produção, aquisição e reforma de unidades habitacionais de interesse social. A segunda parte trata do registro eletrônico de imóveis, que possibilitará a formação de um banco de dados nacional com os atos registrais praticados antes e depois da vigência da Lei de Registros Públicos 6.015/73. Também nela foi instituída a gratuidade do registro do primeiro imóvel residencial adquirido no âmbito do PMCMV, cujo beneficiário tenha renda familiar mensal de até três salários mínimos. A terceira parte define conceitos, regras, procedimentos de âmbito federal para a promoção da regularização fundiária de assentamentos urbanos, sendo este o primeiro marco legal de alcance nacional a tratar especificamente dessa matéria, introduzindo novos instrumentos para legalizar miles de moradias urbanas no Brasil.
A sanção presidencial, no entanto, vetou 3 dispositivos da nova lei, sendo um deles o artigo 63, que estendia, exclusivamente para a regularização fundiária de assentamentos urbanos de interesse específico do Distrito Federal, os dispositivos criados para a regularização fundiária de interesse social, por entender que o preceito que dá amparo à regularização fundiária de interesse social é diverso daquele que orienta a regularização fundiária de interesse específico.
A regularização fundiária de interesse social visa à proteção do direito constitucional de moradia para famílias de baixa renda que não tiveram condições de acessar os mercados habitacionais formais, sendo induzidas a solucionar sua demanda por moradia de forma irregular, em áreas normalmente bloqueadas pela legislação ao mercado formal.
Nesses casos, faz-se necessário introduzir dispositivos normativos especiais para viabilizar a regularização fundiária, garantindo às populações sem recursos o seu direito de moradia e protegendo-as de eventuais despejos. No caso das ocupações caracterizadas por níveis de renda elevados, a irregularidade surge da opção dos moradores e não da estrita necessidade de moradia. Nesse sentido o Conselho das Cidades, na sua última reunião plenária realizada em 2 de julho de 2009, aprovou Resolução Recomendada solicitando o veto desse dispositivo. Também opinaram pelo veto do dispositivo os Ministérios da Justiça, do Meio Ambiente, e do Planejamento, Orçamento e Gestão.
O veto a este artigo se justifica pela razão de que a aplicação das regras mencionadas a ocupantes de áreas públicas no Distrito Federal, independentemente da sua renda, é incompatível com os princípios que nortearam a construção de toda a sistemática de regularização fundiária contida na Medida Provisória no 459, de 2009, cujo objetivo central foi a melhoria das condições materiais da população de baixa renda residentes em favelas ou áreas de risco.
Além disso, a localização do imóvel em determinada Unidade da Federação, por si só, não é razão suficiente para que seja atribuído tratamento mais benéfico aos ocupantes dessas áreas, uma vez que, com esse discrímen, não é possível identificar a desigualdade a ser equilibrada a partir deste tratamento, o qual beneficiará população de média e alta renda, em desarmonia com o princípio da igualdade.
A Lei 11.977, estabeleceu importantes normas visadas à regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, que alteram e ampliam de forma importante o Estatuto da Cidade e outras normas legales com ele relacionadas.

Conforme a Lei, a regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Princípios:
I – ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o nível adequado de habitabilidade e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística, social e ambiental;
II – articulação com as políticas setoriais de habitação, de meio ambiente, de saneamento básico e de mobilidade urbana, nos diferentes níveis de governo e com as iniciativas públicas e privadas, voltadas à integração social e à geração de emprego e renda;
III – participação dos interessados em todas as etapas do processo de regularização;
IV – estímulo à resolução extrajudicial de conflitos; e
V – concessão do título preferencialmente para a mulher.

Conteúdo mínimo do projeto de regularização fundiária:
I – as áreas ou lotes a serem regularizados e, se houver necessidade, as edificações que serão relocadas;
II – as vias de circulação existentes ou projetadas e, se possível, as outras áreas destinadas a uso público;
III – as medidas necessárias para a promoção da sustentabilidade urbanística, social e ambiental da área ocupada, incluindo as compensações urbanísticas e ambientais previstas em lei;
IV – as condições para promover a segurança da população em situações de risco; e
V – as medidas previstas para adequação da infraestrutura básica.

11 de agosto de 2009

Estatuto da cidade e direito de superfície


LOBATO GÓMEZ, J. Miguel., A disciplina do direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro, RTDC, 20, 2004, pp. 65 y ss


Introdução; Delimitação teórica do tema; O direito de superfície como exceção aos princípios da acessão; Conceito e caracteres do direito de superfície; O conceito do direito de superfície na doutrina brasileira atual; A disciplina jurídica do direito de superfície no Brasil; A regulação do direito de superfície no Estatuto da Cidade; A regulação do direito de superfície no novo Código Civil; A normativa aplicável à superfície urbana; Micro-sistemas jurídicos e Estatuto da Cidade; A posição do novo Código Civil em relação com o Estatuto da Cidade; O direito de superfície como instrumento de gestão urbanística; O regime do direito de superfície comum; Regime jurídico do direito de superfície urbano; O regime imperativo;
O papel da autonomia da vontade; O direito do proprietário do terreno à reversão das edificações e plantações; A transmissibilidade do direito de superfície; Considerações finais.

*****

Nos últimos anos se assistiu novamente, no Direito Brasileiro, ao reconhecimento e à regulação de um antigo instituto jurídico: o direito de superfície. A aceitação geral da superfície como um direito real, sua regulação como instrumento de política urbanística e a boa acolhida da figura por parte da doutrina brasileira animaram ao legislador a aceitá-lo incondicionalmente. Destarte, as expectativas levantadas com o resgate e a incorporação deste direito real de fruição ou gozo em coisa alheia no ordenamento brasileiro são muitas.
Paradoxalmente, por causa das vicissitudes do projeto de novo Código Civil e da demora que sofreu sua aprovação e promulgação, este espetacular ressurgimento do direito de superfície encontrou sua primeira expressão legislativa no âmbito urbanístico, como um instrumento jurídico apto e idôneo para contribuir ao desenvolvimento urbano, já que foi acolhido e regulado no Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece as diretrizes gerais da política urbana. O direito de superfície só alcançou posteriormente, uma regulação de âmbito mais geral, quando contemplado no novo Código Civil do Brasil, promulgado pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que também dá carta de natureza a esta figura jurídica, enumera-a entre os direitos reais tipificados no artigo 1255,II e a regula em capítulo independente (artigos 1.369 a 1.367), sob a rubrica Da Superfície. Portanto, com o novo Código vem à tona novamente o direito de superfície, que idealmente permite maiores possibilidades de aproveitamento do solo. Contudo, ainda existem muitas dúvidas a esclarecer sobre referido instituto.
Teoricamente, a edificação não precisa necessariamente a prévia aquisição da propriedade de um terreno; basta a constituição de um direito real de superfície sobre ele, uma vez que facilita a construção, permite evitar a especulação do solo por reservar as possíveis mais-valias e aumentos futuros de valor dos terrenos para o proprietário, tanto se for um particular quanto se for uma pessoa jurídica de Direito público.
Não deve surpreender, assim sendo, que o direito de superfície, enquanto fórmula de dissociação da propriedade e o uso do solo, tenha atraído a atenção da doutrina e do legislador brasileiro como instrumento de política urbanística. Em troca de uma limitação temporária no uso dos terrenos, estes se obtêm com um custo muito menor. Com isso se reduz o volume inicial de recursos necessários para atender às necessidades da demanda de habitação no setor imobiliário. Representa também um estímulo para a mobilização do solo pelos proprietários privados, que podem pôr terrenos à disposição das promotoras e incorporadoras, sem renunciar a sua recuperação futura junto com a edificação e com a revalorização correspondente. O fomento de atividades industriais, o desenvolvimento de serviços comerciais, hoteleiros, hospitalares ou de lazer, o fomento das moradias de aluguel, também podem encontrar no direito de superfície um grande reforço. Destarte, serve para frear os preços dos imóveis urbanos, para controlar a especulação imobiliária e para promover a solução dos graves problemas de serviços e de habitação que têm as grandes cidades.
Entretanto, as maiores expectativas de utilização deste instrumento estão na cessão de direitos de superfície sobre terrenos de titularidade pública, destinados a incrementar o número de moradias sociais. Quer dizer, a formação de bancos de terras, de reservas fundiárias ou de patrimônios públicos de solo, unida ao uso do direito de superfície, pode ser uma peça chave na política urbanística para o alívio das necessidades de moradia de amplos setores da população, já que permite aos Poderes Públicos, conservando sempre contingente de terrenos urbanos em propriedade e mantendo sobre eles a titularidade pública, ceder à iniciativa particular direitos de superfície com a finalidade de melhorar a gestão e o aproveitamento urbanístico dos terrenos pertencentes a esses patrimônios. O direito de superfície, deste modo, pode cumprir função fundamental na busca do ponto de equilíbrio, na política de habitação, entre os interesses da iniciativa privada e o controle da Administração sobre a ordenação urbanística e na conservação da titularidade dos terrenos. É, portanto, um instrumento jurídico que ajuda a Administração a garantir o direito a cidades sustentáveis, entendido especialmente como o direito à terra urbana e à moradia, tanto para as presentes como para as futuras gerações.
Porem, é preciso perguntar-se se florescera o direito de superfície, por tanto tempo afastado da legislação brasileira, dos costumes da população e da prática jurídica. É muito cedo para examinar a repercussão das novas regras legais. As legítimas expectativas despertadas na doutrina por sua introdução como instrumento de gestão urbanística, a nova roupagem que lhe confere sua vinculação à consecução dos fins sociais da propriedade imobiliária, sua regulamentação no novo Código Civil como substitutivo da enfiteuse, sua aptidão para solucionar e evitar conflitos relativos ao aproveitamento econômico do solo rústico e urbano, as possibilidades de uso como instrumento de reforma agrária que enxerga a doutrina, não são suficientes para promover a sua utilização se os particulares e, especialmente, as entidades públicas não confiam nas possibilidades reais desta figura jurídica. Não basta a disciplina legal do direito de superfície para que venha a ser utilizado, senão que é preciso um câmbio de mentalidade dos operadores jurídicos para que a nova instituição seja atrativa. O tempo dirá.

10 de agosto de 2009

Direito de preempção e política urbana



Su
mario do artigo publicado na RDI

1. Introdução, pp. 23 y ss

2. Gestão urbanística e direitos de adquisição preferencial, pp 28 y ss

3. O regime legal do direito de preempção urbanística, pp. 32 y ss

4. Natureza e caracteres do direito de preempção urbanística, pp. 35 y ss

5. A disciplina jurídica do direito de preempção urbanística, pp. 41 y ss

6. Conclusão, pp. 45 y 46


Sumário

1. DOUTRINA NACIONAL
1.1 Concessão de uso especial para fins de moradia – BENEDITO SILVÉRIO RIBEIRO
1.2 Direito de preempção e política urbana – J. MIGUEL LOBATO GÓMEZ
1.3 A trajetória do título no registro de imóveis: considerações gerais – LUIZ EGON RICHTER
1.4 Sobre a função social do registrador de imóveis – RICARDO DIP

2. XXX ENCONTRO DOS OFICIAIS DE REGISTRO DE IMÓVEIS DO BRASIL
................

3. DOUTRINA INTERNACIONAL
3.1 Organização do registro da propriedade em países em desenvolvimento – BENITO ARRUÑADA

4. II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE DIREITO REGISTRAL
.........

5. CONSULTAS E PARECERES
5.1 Inconstitucionalidade da cobrança de ISS sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais (LC 116, de 31.07.2003) – ROQUE ANTONIO CARRAZZA
5.2 A necessidade de lei para a criação de cartórios extrajudiciais – HERCULES ALEXANDRE DA COSTA BENÍCIO
5.3 Política nacional de regularização fundiária: contexto, propostas e limites – EDÉSIO FERNANDES


Política urbana no Brasil: IV. Princípios e instrumentos jurídicos


Para poder compreender de forma simples e adequada a profunda transformação da propriedade imobiliária e, inclusive, no próprio conceito do domínio privado tras vigorar o Estatuto da Cidade, convém individualizar os princípios que inspiram esta Lei e as idéias motrizes que inspiram suas normas.

O ponto de partida para sintetizar estas idéias, é considerar que o Estatuto da Cidade é, essencialmente, uma lei ordinária que contém normas jurídicas de natureza urbanística dirigidas a regular o uso da propriedade urbana, em desenvolvimento dos princípios constitucionais. Para isso estabelece uma série de princípios ou diretrizes gerais que inspiram a política urbana e que, através do planejamento normativo da cidade, tratam de conseguir que o financiamento de parte substancial dos custos do processo de desenvolvimento urbano produzidos pela implantação de equipamentos coletivos, pela conservação das características singulares da cidade representadas por os valores históricos, culturais ou ambientais dela, pela ampliação da rede de serviços públicos, pelo traçado de novas vias de comunicação e a abertura de espaços livres, pela urbanização de novas zonas residenciais, corra a cargo dos proprietários privados do solo, na medida que estes se beneficiam do aumento do valor dos terrenos derivados das melhoras experimentadas pela cidade. Em conseqüência, a propriedade do solo fica afetada a tal fim por uma série de deveres e limitações que encontram seu fundamento em um sistema de ordenação urbana cuidadosamente planejado e com finalidade contraespeculativa. Portanto, tem que ser destacado o caráter normativo e ordenador da Lei e, em sua virtude, do planejamento urbanístico que se cria e se desenvolve a seu amparo. O corolário deste dobro caráter normativo vem dado, logicamente, pelas conseqüências que o Estatuto da Cidade e os planos aprovados de conformidade com ele, estabelecem em relação com o direito de propriedade privada do solo.

Com maior precisão, se podem destacar três idéias fundamentais, intimamente ligadas, que constituem um perfeito resumo dos princípios materiais inspiradores do Estatuto da Cidade, e que bem podem servir de ponto de referência para sua análise.

A primeira destas idéias é simples, mas encerra e condensa em si mesma toda a força inovadora da normativa urbanística em seu aspecto técnico: a idéia básica da política urbana é a de Plano, que quando existe possui uma indubitável eficácia normativa. A lei que instaura o plan urbanístico é eficaz e vinculante para os particulares e para os órganos da Administração. O planejamento urbanístico adquire caráter normativo e se constitui no eixo em torno do qual se articula toda ordenação urbana. É, em conseqüência, a base necessária e fundamental da ordenação da cidade.

A segunda idéia, inseparável da anterior, está profundamente ligada a ela: o urbanismo se converteu rigorosamente em função pública. A lei urbanística, reconhece o papel fundamental do Município na formulação do planejamento urbano e na gestão do processo de urbanização das cidades. Utilizando palavras do eminente professor Eduardo García de Enterría, quando comentava a primeira Lei do Solo espanhola de 1956, pode reconduzir-se todo o sistema do Estatuto “ao princípio essencial da qualificação do urbanismo como uma função pública exclusiva, estritamente tal. Seria neste sentido o último passo da idéia primitiva do planejamento e da direção pública da atividade urbanística”. O passo consiste, dito singelamente, “em privar à propriedade de todas as expectativas urbanísticas e em considerar estas como derivadas diretamente do plano, em lugar de entender que o plano devia reduzir-se a limitar as expectativas urbanísticas que sustantivamente emanassem da propriedade mesma”. Portanto, poder-se-ia afirmar que em Brasil a partir do Estatuto da Cidade o urbanismo, ou melhor a ordenação urbana, é um dos principais elementos da ordenação do território e uma autêntica função pública.

Daqui deriva a terceira das ideia centrais que sustenta o Estatuto da Cidade: efetiva uma transformação da propriedade de singular trascendencia, que até supõe um novo conceito de propriedade. Em conseqüência, pode-se dizer que as normas urbanísticas não restringem ocasionalmente a propriedade, mas sim definem o conteúdo normal do domínio.

Ficam assim, perfeitamente individualizados, os três princípios fundamentais em torno dos quais se estrutura o EC:

  • o urbanismo fica configurado como uma autêntica função pública;
  • o plano, particularmente o plano diretor, se situa como nervo de toda a ordenação urbanística;
  • opera-se uma transformação no conceito e no regime do domínio privado, que se conecta com a idéia da função social da propriedade, que conduz a um peculiar regime urbanístico do solo.

Não obstante, esta demarcação dos princípios essenciais do Estatuto, é possível expor um elenco ainda mais amplo e circunstanciado das idéias inspiradoras da citada lei, já que estão expressamente definidas no artigo 2º. Este preceito determina que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II - gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

III - cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;

IV - planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;

V - oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;

VI - ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;

b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;

c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana;

d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;

e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização;

f) a deterioração das áreas urbanizadas;

g) a poluição e a degradação ambiental;

VII - integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;

VIII - adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência;

IX - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;

X - adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais;

XI - recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos;

XII - proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;

XIII - audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;

XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;

XV - simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;

XVI - isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.

Em conclusão, pode dizer-se que se produz uma substancial modificação do regime jurídico da propriedade do solo através do reconhecimento de sua função social, que pode ser condensada do modo seguinte:

  1. O conteúdo do direito de propriedade imobiliária, e conseguintemente o aproveitamento urbanístico das parcelas, dependerá de sua qualificação urbanística determinada no plano diretor (coeficiente de aproveitamento, possibilidade de alteração de uso do solo, limite de edificabilidade, contrapartidas do proprietário, etc.);

  2. O exercício das faculdades do direito de propriedade deverá ser conforme com as disposições do Estatuto da Cidade e as contidas no plano diretor e no resto do planejamento municipal aprovado conforme os dispositivos legais;

  3. A ordenação de uso dos terrenos e construções prevista no Estatuto da Cidade e no planejamento urbanístico estabelecido a seu amparo, não conferirá aos proprietários direito a exigir indenização, por implicar meras limitações e deveres que definem o conteúdo normal da propriedade imobiliária segundo sua qualificação urbanística;

  4. A comunidade participará das plusvalias geradas pelo processo de urbanização e recuperará os investimentos efetuados pelo Poder Público;

  5. Existirá possibilidade de o Município valer-se da desapropriação, já seja desapropriação urbanística ordinária, já seja desapropriação-sanção por descumprimento do dever de edificação ou parcelamento compulsório, como complemento e instrumento de fechamento do sistema ordenador da propriedade urbanística.


En quanto aos instrumentos da política urbana, para os fins do Estatuto da Cidade, serão utilizados, entre outros, já que a lei deixa aberta a possibilidade de que a Administração Pública utilize qualquer outro instrumento nela no previsto expressamente, instrumentos de planejamento, institutos tributários e financeiros, institutos jurídicos e políticos e estudos prévios de impacto ambiental (EIA) e de vizinhança (EIV) (artigo 4º)

Os instrumentos de planejamento previstos na lei podem ser de caráter supra-municipal, sejam planos nacionais, estaduais e regionais de ordenação do território, e de caráter municipal. Porém é o planejamento municipal, integrado especialmente por o plano diretor com força normativa, o que represente o maior destaque. Junto ao plano diretor se contemplam outros instrumentos de planejamento complementares como a disciplina do parcelamento, uso e ocupação do solo, o plano de zoneamento ambiental, o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual, incluindo a gestão orçamentária participativa, assim como diversos planos, programas e projetos setoriais.

Também pode o Poder Público utilizar-se de institutos tributários e financeiros, tais como a contribuição de melhoria e diversos incentivos e benefícios fiscais e financeiros. Porém, se destaca entre estes instrumentos o tributo sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU), que joga importante papel no regime legal de parcelamento, edificação ou utilização compulsória da propriedade urbana, adotando forma progressiva nos casos de descumprimento do dever de urbanizar o edificar.

Em quanto aos institutos jurídicos o legislador vale-se de figuras tradicionais como a desapropriação, as servidões e limitações administrativas e o tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano. Introduz outros novos, como o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsória do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, a outorga onerosa do direito de construir, a transferência do direito de construir, a criação de unidades de conservação ou de zonas especiais de interesse social, as operações urbanas consorciadas e a regularização fundiária. E por derradeiro, atribui uma nova função urbanística a institutos jurídicos tradicionais como a concessão de direito real de uso o de uso especial para fins de moradia, a usucapião especial de imóvel urbano, o direito de superfície e o direito de preempção.

Dentre estes institutos, merecem especial destaque a desapropriação, que jogará além da função tradicional, uma nova função de desapropriação-sanção nos casos de descumprimento do dever de parcelar ou edificar; a Usucapião Especial de Imóvel Urbano, individual ou coletiva, visada a garantir a habitação a os posseiros de áreas urbanas que estejam utilizando-as para sua moradia por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, e que não tenham outro imóvel; o Direito de Preempção, que outorga ao Poder Público preferência para adquirir os imóveis urbanos objeto de alienação onerosa entre particulares; e, particularmente, o denominado solo criado.

“Considera-se solo criado -segundo precisa definição do Hely Lopes Meirelles- toda área edificável além do coeficiente único de aproveitamento do lote, legalmente fixado para o local. O solo criado, ensina este autor, será sempre um acréscimo ao direito de construir além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido pela lei: acima de esse coeficiente, até o limite que as normas edilícias admitirem, o proprietário não terá o direito originário de construir más poderá adquiri-lo do Município, nas condiciones que a lei local dispuser para a respectiva zona”. Portanto, este direito, que será separável do terreno e poderá ser exercido em outro local ou transmitido a terceiros, se atribuirá aos proprietários de solo, mediante contrapartida, a traves da Outorga Onerosa do Direito a Construir. O plano diretor fixará a relação entre a área edificável e a área do terreno, ou coeficiente de aproveitamento básico a que tem direito os proprietários dos terrenos urbanos, as áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima desse coeficiente e os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento.

Para completar os instrumentos previstos por o Estatuto da Cidade tem que fazer-se alusão a dos institutos jurídicos, a assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos e o referendo popular e plebiscito, que visam garantir a gestão democrática da política urbana, e os estudos prévios de impacto ambiental (EIA), já consagrado na legislação ambiental, e de impacto de vizinhança (EIV) regulado com muito detalhe.


Política urbana no Brasil: III. Constituição Federal de 1988 e Estatuto da Cidade



Ainda que a Constituição garanta que a propriedade é um direito fundamental no caput do artigo 5º, tornou a função social um imperativo do direito de propriedade privada e um princípio geral da ordem econômica. Com efeito, o artigo 5º, XXIII estabelece que “a propriedade atenderá a sua função social”, e o artigo 170, depois de declarar que a ordem econômica se funda-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, impõe a observação, entre outros, dos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade.

Não bastasse isso, a Constituição Federal pela primeira vez na história do Brasil, tomou em consideração de forma orgânica e global os problemas sociais e jurídicos da vida urbana, especialmente agudos nas cidades grandes e nas de meio porte, em Capítulo intitulado “Da Política Urbana”, dentro dos dispositivos referidos à ordem econômica e financeira.

Os eixos sobre os quais a Carta Magna constrói a política urbana são os seguintes:
  • a) subordinação da propriedade urbana ao cumprimento de sua função social, impondo inclusive o parcelamento e a edificação compulsória dos terrenos urbanos não edificados;
  • b) definição e concretização legal pela União das diretrizes gerais da política urbana;
  • c) previsão de utilização geral da desapropriação com fins urbanísticos;
  • d) atribuição ao Poder Público municipal a competência básica para definir a política de desenvolvimento urbano de cada cidade, com a finalidade de alcançar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes;
  • e) utilização do planejamento urbanístico, particularmente do plano diretor, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana;
  • f) instituição da usucapião especial no solo urbano para fins de moradia.

Com efeito, no caput do artigo 182 dispõe a Carta constitucional que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”, ainda que determinar quais sejam essas funções é uma pergunta de difícil resposta. Assim mesmo, o § 2º determina que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, que conforme o § 1º do artigo, “é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.

Além disso, no § 3º, é faculdade da Administração desapropriar imóveis urbanos por causa de interesse público, com prévia e justa indenização em dinheiro; e, no § 4º, é facultado o Poder Público municipal para “exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento”, sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação sanção com pagamento mediante títulos da dívida pública.

Por derradeiro, no artigo 183, dispõe que “aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

O Congresso Nacional, conforme o mandato da Carta Magna, elaborou uma lei inspirada nos precedentes anteriores para regular o desenho e a execução da política urbana, a Lei Federal 10.257/2001, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, à qual denominou expressamente Estatuto da Cidade, visando estabelecer as “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (art. 1º).

Salienta Edésio Fernández, que a nova lei que consolidou a ordem constitucional quanto ao controle jurídico do processo de desenvolvimento urbano, visando reorientar a ação do poder público, do mercado imobiliário e da sociedade conforme novos critérios econômicos, sociais e ambientais, tem quatro dimensões fundamentais, quais sejam:
  • a) consolida a noção da função social e ambiental da propriedade e da cidade como o marco conceitual jurídico‑político para o Direito Urbanístico;
  • b) regulamenta e cria novos instrumentos urbanísticos para a construção de uma ordem urbana socialmente justa e inclusiva pelos municípios;
  • c) aponta processos político‑jurídicos para a gestão democrática das cidades;
  • d)propõe instrumentos jurídicos para a regularização fundiária dos assentamentos informais em áreas urbanas.
Assim sendo, o Estatuto da Cidade, depois de declarar que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” (art. 2º), determina que para os fins da lei serão utilizados, entre outros instrumentos jurídicos, os institutos da desapropriação, das servidões e limitações administrativas; a concessão de uso especial para fins de moradia; a usucapião especial de imóvel urbano; o direito de superfície; e, o direito de preempção. Portanto, dá suporte jurídico à ação dos governos municipais para buscar solução às graves questões urbanas, sociais e ambientais que afetam a viva da enorme parcela de brasileiros que habitam nas cidades.

A Lei desenha os instrumentos de política urbanística que quadram ao poder municipal para conseguir o melhor desenvolvimento da cidade e a mais ordenada expansão urbana, para administrar melhor as reserva fundiárias do Município e os terrenos desapropriados, para contribuir a regular o mercado imobiliário, para facilitar o desenho e a execução do planejamento urbanístico, para garantir a utilização mais adequada do solo urbano e, no caso, para promover a regularização fundiária ou a construção de moradias sociais. Quer dizer, a diferença essencial entre as normas ordinárias e as normas urbanísticas, não radica no diferente valor jurídico de ambas, senão na sua finalidade. As normas do Estatuto da Cidade tem que ser interpretadas e aplicadas respeitando as diretrizes fixadas nele próprio (art. 2º), garantindo, entre outras coisas, direito a cidades sustentáveis, gestão democrática da política urbana, equipamentos urbanos adequados, ordenação e controle do uso do solo urbano, proteção do patrimônio cultural e do meio ambiente, justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes da urbanização e recuperação pelo Poder Público de uma parte das mais-valias urbanísticas. Porém, garantindo a isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização e edificação, atendido sempre o interesse social. É aí aonde tem cabida a legislação civil comum, cujos dispositivos estão orientados pela idéia básica da isonomia.

Deste modo, a integração normativa do Estatuto da Cidade, que é uma lei especial que consagra um micro-sistema jurídico, com o resto do ordenamento jurídico têm que ser absolutamente respeitosa da função social da propriedade do solo urbano garantida na Constituição e detalhada na lei urbanística. Não se esqueça que o Estatuto da Cidade estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental. Ainda mais, a propriedade urbana somente cumpre sua função social, quando atende às exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no plano diretor. Porém, no caso de existir normas conflitantes com o Código Civil, que tenham a finalidade de regulamentar relações de Direito privado em cuja criação intervenha a livre e espontânea vontade das partes, será aplicável preferentemente a lei civil, independentemente de sua utilização como direito supletivo caso de existir lagunas na legislação urbanística.

O mais adequado, portanto, é pensar que ambas as regulamentações se integram em um tudo orgânico, o ordenamento jurídico brasileiro, e em conseqüência, deve proceder uma interpretação sistemática, única, conjunta e integrada de todo o complexo normativo relativo a cada assunto.

É verdade que nos decênios anteriores o Código Civil, que antes ocupava um lugar central no ordenamento jurídico privado com valor praticamente constitucional, passou a converter-se num elemento a mais de um ordenamento jurídico complexo e fragmentário. Junto ao Código Civil surgiu uma variada legislação especial, destinada a regular distintos aspectos das relações jurídicas, que com nova linguagem e lógica distinta, criou abundantes antinomias com o Direito codificado. Essas novas normas jurídicas, que encontraram sua fonte na legislação especial, se caracterizam por ser instrumentos de engenharia social que o Estado utilizou para atuar em concreto a "justiça social" e para proteger determinados interesses sociais.

Quer dizer, o Direito privado passou de ser um "mono-sistema" jurídico centrado no Código Civil, no qual as normas aparecem como partes integrantes de um todo orgânico e sistemático, a converter-se em um "poli-sistema", no qual ganham autonomia própria distintos micro-sistemas normativos em torno de leis especiais que concretizam, para cada setor, a nova valoração social dos interesses em jogo e as formas da intervenção pública para efetuar sua tutela. Dito muito graficamente com Natalino IRTI, aconteceu uma decodificação do Direito civil. Destarte, o Código deixou de ser “o sistema” por excelência do Direito privado e terminou convertendo-se em mais um dos sistemas integradores do ordenamento jurídico.

Esta nova técnica legislativa, da qual é expressão o Estatuto da Cidade, surgiu para enfrentar as novas realidades e os novos problemas jurídicos. É expressão normativa da complexidade social, econômica e política da vida contemporânea e traduz as mudanças e as transformação dos valores e princípios caracterizadores da organização social atual. Por isso, se desenvolve em torno às normas, princípios e valores próprio do atual Estado social y democrático de Direito. Tais estatutos, que freqüentemente encontraram sua origem direta no desenvolvimento dos próprios dispositivos constitucionais, regulam diversos setores da economia e cuidam de inteiras áreas de atuação do Direito, criando novos ramos independentes disciplinados por regras, não só de Direito civil, mas também de outras disciplinas jurídicas, especialmente de Direito administrativo. Neste sentido o Estatuto da Cidade já está impulsionando vigorosamente um novo ramo jurídico chamado a alcançar no futuro um grande desenvolvimento, o Direito Urbanístico.

Mas ninguém deve esquecer que a idéia dos micro-sistemas está calçada de uma situação concreta na qual as leis especiais que originam e conformam estes novos micro-sistemas jurídicos são sempre posteriores ao Código Civil, que, além disso, está completamente alheio aos princípios constitucionais que inspiram os corpus normativos formados pelas leis especiais. Portanto sua autonomia, à margem do Código Civil, apóia-se tanto em sua integração no sistema constitucional vigente, como nos princípios de especialidade e posterioridade.

Atualmente, no Direito brasileiro não se dá esta situação, bem ao contrário. O novo Código Civil é posterior à Constituição e, praticamente, à todas as leis especiais vigentes, incluído o Estatuto da Cidade. Além disso, não cabe duvida que os princípios fundamentais que inspiram o novo Código em matéria patrimonial podem considerar-se, formal e materialmente, conformes com a atual Carta Magna, especialmente em matéria de função social da propriedade e do contrato. Portanto, ninguém pode argumentar que, via de regra, o Código Civil vigente, por mais que seja resultado de um processo iniciado nos anos setenta, por mais que assuma conceitos, regras e princípios de Direito patrimonial consagrados no velho Código de 1916, não respeita os valores, princípios e normas constitucionais.

Além disso, deve lembrar-se que embora o Estatuto da Cidade é norma com conteúdo predominante de Direito público, isso não impede que afete substancialmente à regulação do contrato, da propriedade e vários direitos reais contemplados no Código Civil. Quer dizer, a apesar de considerar o Estatuto da Cidade fundamentalmente como normativa de Direito Público, isso não significa que todo seu conteúdo se refira a esse setor do ordenamento jurídico. Em concreto, a desapropriação, as limitações ao direito de propriedade por razões urbanísticas, as servidões ainda que administrativas, o direito real de uso, a usucapião, o direito de superfície, o direito de preempção, a transferência do direito a construir, e as operações urbanas consorciadas não podem ser completamente entendidas nem aplicadas sem o apoio nas normas civis.

Entretanto, existem matizes particulares na regulação especial urbanística muito além das normas de Direito privado que não da para esquecer, bem em razão às características do objeto sobre a qual recai, o solo urbano, bem em razão de natureza pública de seu principal destinatário, o Poder Público municipal, bem na função ou finalidade econômico-social chamada a cumprir, isto é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais de cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Matizes e particularidades que, embora não modificam a natureza essencial dos instrumentos jurídicos utilizados na gestão urbanística, sim introduzem especialidades no seu concreto regime jurídico.

Política urbana no Brasil: II. Precedentes


Em Brasil, fatos novos aconselharam novas formas do uso do solo urbano, redefinindo o conteúdo do direito de propriedade imobiliária em função da necessidade premente de regulamentar e ordenar o assentamento humano nas cidades.

Esses fatos, conforme resume concisamente Ricardo Pereira Lira, são basicamente os seguintes:

  • excessivo crescimento da população urbana, em decorrência da industrialização;

  • assentamento dessa população nas cidades de maneira inteiramente desordenada, sem qualquer planejamento e racionalidade;

  • assentamento da população de forma iníqua, realizando se esse assenta­mento sob o domínio da chamada segregação residencial, por força da qual às chamadas populações carentes e de baixa renda são destinadas as periferias do espaço urbano, em condições de vida as mais dilacerantes, recebendo as áreas de rendi­mento mais alto os maiores investimentos públicos;

  • considerável atividade especulativa, em que os donos do solo urbano, utilizando a sua faculdade de não uso, criam um banco de terras em seu benefício, aguardando o momento de, pela alienação das glebas estocadas, locupletar se com as mais-valias resultantes dos investimentos de toda comunidade.


Todos estes dados concorrem de forma irrefragável para demonstrar a evidente necessidade de uma nova política urbanística de envergadura, à base da qual esteja uma concepção renovada da propriedade imobiliária.

A Carta de Embu

Em vista da situação, contemporaneamente al impulso legislativo dos paises europeus no intento de redefinir o direito de propriedade imobiliária e de conformar umas condições jurídicas que garantissem o interesse coletivo no desenvolvimento urbano, surgiu um clamor em pro da transformação da precária situação urbanística brasileira, inspirado por técnicos e juristas estudiosos do urbanismo e presidido pela idéia da desagregação do direito de construir do conteúdo do direito de propriedade.

Na verdade, o valor da propriedade urbana não depende diretamente das qualidades do terreno, senão do uso que o proprietário lhe pode dar em virtude de sua inserção no contexto da cidade. A possibilidade de o solo ser utilizado como suporte da edificação não é so decorrente de atuação do proprietário. O potencial urbanístico dum terreno depende da existência de uma infra-estrutura urbana criada, na maioria das ocasiões, com recursos públicos e privados alheios ao proprietário. Como adverte Eros Roberto Grau, o acréscimo de valor do solo urbano, “não é produto de nenhuma aplicação de capital ou de trabalho por parte do proprietário individual, resultando da ação conjugada do setor privado –como um todo- e do setor público, ou seja, da comunidade” .

O fulcro do debate doutrinário sobre o novo conceito do direito da propriedade imobiliária foi a chamada Carta de Embu, que ainda hoje conserva grande interesse e atualidade. Este documento, datado em 11 de dezembro de 1976, foi subscrito por eminentes urbanistas e juristas (Álvaro Villaça Azevedo, Celso Antônio Bandeira de Melo, Dalmo do Valle Nogueira Filho, Eros Roberto Grau, Eurico de Andrade Azevedo, Fábio Fanucchi, José Afonso da Silva, Maria Lourdes Cesarino Costa, Mario Pazzaglini Filho, Miguel Seabra Fagundes, Jorge Hori, Antônio Claudio Moreira Lima, Clementina De Ambrosis, Domingos Theodoro de Azevedo Netto, Luiz Carlos Costa e Norberto Amorim), e assim se manifesta:

"Considerando que, no território de uma cidade, certos locais são mais favoráveis à implantação de diferentes tipos de atividades urbanas;

Considerando que a competição por esses locais tende a elevar o preço dos terrenos e a aumentar a densidade das áreas construídas;

Considerando que a moderna tecnologia da construção civil permite intensificar a utilização dos terrenos, multiplicando o número de pavimentos pela ocupação do espaço aéreo ou do subsolo;

Considerando que esta intensificação sobrecarrega toda a infra estrutura urbana, a saber, a capacidade das vias, das redes de água, esgoto e energia elétrica, bem assim a dos equipa­mentos sociais, tais como, escolas, áreas verdes etc.;

Considerando que essa tecnologia vem ao encontro dos desejos de multiplicar a utilização dos locais de maior demanda, e, por assim dizer, permite a criação de solo novo, ou seja, de áreas adicionais utilizáveis, não apoiadas diretamente sobre solo natural;

Considerando que a legislação de uso do solo procura limitar este adensamento, diferenciadamente para cada zona, no interesse da comunidade;

Considerando que um dos efeitos colaterais dessa legislação é o de valorizar diferentemente os imóveis, em conseqüência de sua capacidade legal de comportar área edificada, gerando situações de injustiça;

Considerando que o direito de propriedade, assegurado na Constituição, é condicionado pelo principio da função social da propriedade, não devendo, assim, exceder determinada extensão de uso e disposição, cujo volume é definido segundo a relevância do interesse social;

Admite se que, assim como o loteador é obrigado a entregar ao poder público áreas destinadas ao sistema viário, equipamentos públicos e lazer, igualmente, o criador de solo deverá oferecer à coletividade as compensações necessárias ao re-equilíbrio urbano reclamado pela criação do solo adicional, e

Conclui se que:

1. É constitucional a fixação, pelo município, de um coeficiente único de edificação para todos os terrenos urbanos.

1.1 A fixação desse coeficiente não interfere com a competência municipal para estabelecer índices diversos de utilização dos terrenos, tal como já se faz, mediante legislação de zoneamento.

1.2 Toda edificação acima do coeficiente único é considerada solo criado, quer envolva ocupação de espaço aéreo, quer a de subsolo.

2. É constitucional exigir, na forma da lei municipal, como condição de criação de solo, que o interessado entregue ao poder público áreas proporcionais ao solo criado; quando impossível a oferta destas áreas, por inexistentes ou por não atenderem às condições legais para tanto requeridas, é admissível sua substituição pelo equivalente econômico.

2.1 O proprietário de imóvel sujeito a limitações administrativas, que impeçam a plena utilização do coeficiente único de edificação, poderá alienar a parcela não utilizável do direito de construir.

2.2 No caso do imóvel tombado, o proprietário poderá alienar o direito de construir correspondente à área edificada ou ao coeficiente único de edificação”.


B) O Projeto de Lei 775/1983

Surgido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, órgão do Ministério do Interior responsável pela proposição e implantação da Política Nacional de Desenvolvimento, o projeto de Lei 775/1983 se tramitou no Congresso Nacional até 1988, quando da promulgação da nova Constituição.

Com esta iniciativa o Executivo Federal apresentou ao Poder Legislativo o primeiro projeto de lei que tinha por objetivo estabelecer normas especiais voltadas à política urbana. Tal ação teve por fundamento a idéia de que era necessária a regulamentação explicita das relações urbanas nas cidades brasileiras, vez que até aquele momento a maioria da legislação de policia urbana existente fora editada para uma sociedade eminentemente rural.

Se tratava, portanto, de dar novo enfoque ao regime da propriedade urbana, já que a Constituição Federal de 1967, conforme Emenda Constitucional de 17.10.1969, exigia que a propriedade atendesse à sua função social. Com efeito, o art. 160, III, dispunha que “a ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social”, com base no princípio da “função social da propriedade”. De fato, o direito de propriedade permanecia garantido constitucionalmente no art. 153, § 22, salvo os casos de desapropriação e de perigo público iminente, ressalva a certeza da indenização correspondente. Porém, a propriedade passou a ter novas conotações. O proprietário devia utilizar se de seu bem de forma a atender à função social, vez que tal diretriz é uno dos princípios da ordem econômica e social e fator de desenvolvi­mento e de justiça social.

Destarte, este projeto de Lei pretendeu concretizar e definir legalmente a função social da propriedade imobiliária. Para tanto, propunham se as seguintes diretrizes: igualar as oportunidades de acesso à propriedade urbana e à moradia; distribuir eqüitativamente os benefícios e ônus decorrentes da urbanização; consertar as distorções de valorização da propriedade urbana e recuperar as mais valias para a coletividade; proceder à regularização fundiária das áreas ocupadas por população de baixa renda; e a adequar às normas urbanísticas que regulamentam a faculdade de edificar. Assim sendo, a idéia central do projeto era a de dotar a Administração Pública de condições e instrumentos de atuação mais justos e eficazes para ordenar o meio urbano.

Para conseguir estes objetivos, o projeto de lei criava novos instrumentos jurídicos e administrativos que permitiam efetivar a implementar as ações urbanísticas necessárias. Entre outros, estavam previstos o parcelamento, edificação e utilização compulsórios, o direito de preempção em favor do Poder Público, o direito de superfície e o direito de transferência de potencial construtivo para garantir a preservação do patrimônio urbanístico, artístico, arqueológico e paisagístico, bem como para a implantação de equipamentos urbanos e comunitários.

No campo da participação popular, o projeto previa uma ativa ação fiscalizadora da população interessada no sentido de conferir o cumprimento dos dispositivos estabelecidos, podendo qualquer cidadão ou associação exigir a suspensão de atividades tendentes à ocupação ou uso indevido dos imóveis urbanos.

Em resume, para este projeto de Lei o desenvolvimento urbano consistia, basicamente, na solução de problemas relacionados às distorções do crescimento urbano; ao atendimento da função social da propriedade; ao uso adequado do solo urbano; aos investimentos que resultassem na valorização dos imóveis urbanos; ao estabelecimento de política fiscal e financeira que sustentasse as ações necessárias e, também, à participação da iniciativa privada nos processos de urbanização.

Ainda que anteriormente competia ao governo local a organização da cidade, já que podia resolver em solitário seus problemas de ordem urbanístico, o desmedido crescimento urbano ocasionou novos problemas que não comportavam mais soluções exclusivamente locais. Os assuntos urbanísticos passaram a exigir atuação não apenas da entidade local, mas de todos os entes federados em matéria de urbanismo. Nesta seara, ainda que a intenção não era nada afortunada, o Projeto de Lei 775/1983, tinha a intenção de criar um "sistema nacional de cidades" com desenho comum para todas as cidades do país, em vez de limitar-se a criar as condições mínimas suficientes para garantir a cada Município a possibilidade de organizar a cidade atendendo a suas características particulares e ao bem estar geral.

Na época, a proposta legislativa recebera inúmeras criticas e sugestões de alteração, especialmente de entidades privadas vinculadas ao setor imobiliário. A polemica referia se, basicamente a duas questões: À constitucionalidade de alguns dos dispositivos alvitrados, por entender que eram atentados à garantia da propriedade; e, ao debate, agora completamente superado, sobre a competência da União para legislar sobre urbanismo e desenvolvimento urbano.

Atualmente é justo reconhecer que este projeto teve o mérito de perfilhar um conjunto de medidas técnicas e instrumentos jurídicos voltados para adequar o exercício da propriedade urbana com os interesses coletivos. Destarte ficaram estabelecidas as bases teóricas, jurídicas e urbanísticas, para a feliz gestação do Estatuto da Cidade.

Após a promulgação da Constituição de 1988, o deputado Raul Ferraz, propôs um projeto de lei substitutivo, o Projeto de Lei 2.191/1989, que, foi o primeiro adaptado às novas normas constitucionais, especialmente àquelas referentes ao plano diretor e às competências dos Municípios em matéria urbanística. Entre os principais dispositivos propunha, além da criação de institutos tributários (contribuição urbanística e taxa de urbanização) e de outros instrumento urbanísticos, tais como a requisição de imóvel urbano para loteamento ou urbanização, com reintegração do imóvel ao devidamente urbanizado, e o instituto da reurbanização consorciada uma medida que ainda subsiste sob o manto do Estatuto da Cidade: a usucapião especial de imóvel urbano coletivo utilizado para moradia, que permitiria a aquisição imobiliária de área urbana de metragem superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados ocupada por edificações precárias e mediante a posse ininterrupta e sem oposição.



Política urbana no Brasil: I. Introdução


Em geral a cidade, assim que aglomeração humana, sempre foi objeto de um regime de organização. Por isso, pode dizer-se que plano urbanístico, mais ou menos difuso, existiu sempre (localização de prédios públicos, desenho de ruas e praças, alinhamentos de edifícios, etc.). Entretanto, são as novas condições da vida urbana, que começam com a revolução industrial e o êxodo rural, as que impõem a exigência de planejar o crescimento e o desenvolvimento das cidades e as que propriamente fazem surgir a política urbana como técnica nova, com instrumentos e métodos próprios. Assim sendo, à margem de toda concepção ideológica ou política, surge a necessidade de estabelecer uma efetiva direção pública da atividade urbanística fundamentada no planejamento. As necessidades criadas pelo desenvolvimento do processo urbanizador, exigem a os poderes públicos interveir no mesmo, mediante técnicas jurídicas cada vez mais sofisticadas e complexas. Basta observar os ordenamentos jurídicos afins para comprovar que a intervenção dos poderes públicos assume cada vez mais protagonismo na tarefa da ordenação e o planejamento da atividade urbanística.

As conseqüências da intervenção pública na ordenação urbana trasladam-se de modo imediato ao regime jurídico da propriedade privada do solo, pois, ao reconhecer o valor coletivo da cidade, protegem-se os interesses sociais e condiciona-se a iniciativa e a liberdade dos proprietários para urbanizar e edificar conforme sua exclusiva conveniência. Como assinalou o grande jurista francês Gabriel Marty faz meio século, numa intervenção que ja se considera clássica, “a propriedade privada, caracterizada por seus atributos tradicionais usus, fructus, abusus, encontra-se grandemente afetada e inclusive transformada a conseqüência deste empenho legislativo pelo qual se expressam dentro deste campo a autoridade pública e os intuitos coletivos”.

As manifestações concretas da ordenação urbana no processo de transformação do regime jurídico da propriedade imobiliária, em essência, saõ simples e bem conhecidas. Inicialmente a intervenção pública organizou-se mediante disposições jurídicas muito variadas, a maioria de origem municipal, que rtinham finalidades concretas e específicas: situação de prédios públicos, desenho de praças, ruas e avenidas, higiene e esgoto, estética e ornato, razões militares, etc. Entretanto, a partir da segunda metade do século XX, as normas de intervenção no espaço urbano chegaram a alcançar um certo grau de unidade orgânica nas leis gerais de urbanismo, proporcionando, a partir desse momento, importantes argumentos para falar de uma propriedade urbana ou urbanística claramente diferenciada do regime geral da propriedade inmobiliaria estabelecido até então pelo Código civil.

Neste contexto, a disciplina da propriedade fixada nos Códigos civis, de uma forma ou outra, servia para integrar no esquema conceptual do domínio privado as limitações derivadas das normas urbanística. Os proprietários eram, assim, os principais protagonistas do processo urbanístico. A atividade de transformar o solo por edificação era considerada um direito subjetivo do proprietário do terreno.

Conforme o artigo 552 do Código Napoleão, “la propriété du sol emporte la propriété du dessus et du dessous, e “lê proprietaire peut faire au-dessus toutes lês plantations et constructions qu’il juge à propôs, saufs les exceptions établies au titre des Servitudes ou Services fonciers.

Nesta seara, o artigo 572 do Código Civil brasileiro de 1916, que surpreendentemente é reproduzido nos próprios términos pelo artigo 1.299 do novo Código Civil, determinava: “o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos”. Do conteúdo deste dispositivo bem pode extrair-se a idéia de que “a liberdade de construir é a regra”, e “as restrições e limitações ao direito de construir formam as exceções, e, assim sendo, só são admitidas quando expressamente consignadas em lei ou regulamento”.

Além disso, o marco jurídico general no qual se produz este fenômeno estava presidido por um sistema constitucional que partia do inamovível dogma da existência de uma garantia pétrea da propriedade privada frente aos ataques e intromissões do poder público. Com esta perspectiva claramente garantista se foi desenvolvendo um corpus de normas de polícia urbana organizado sobre a técnica urbanística básica dos alinhamentos de vias públicas, que chegaria a constituir, junto com os tradicionais regulamentos administrativos de construção, o núcleo fundamental do ordenamento urbanístico até a promulgação das grandes leis urbanísticas europeias, já entrada a segunda metade do século XX, e se completava com a técnica da desapropriação do solo para a realização de obras dirigidas a criar espaços de uso coletivo e edifícios públicos. Por isso, se observar panorâmicamente a legislação municipal brasileira, que se desenvolve na segunda metade do século XIX, comprova-se facilmente que é fragmentária e insuficiente para resolver os graves problemas surgidos nas aglomerações urbanas, e também, que contribui com poucas soluções novas e eficazes para dar resposta aos crescentes problemas derivados do crescimento desordenado das cidades.

Atualmente, este esquema ficou substancialmente modificado. As decisões básicas sobre a política urbana e sobre a transformação da cidade foram dissociadas do direito de propriedade do solo, para ser atribuídas a o Poder Público que é responsável pela ordem coletiva. As limitações urbanística já não se ressumem no alinhamento e nivelamento das ruas, nas imposições de altura, volume e estilo dos edifícios nas áreas edificáveis ou nas normas sobre loteamentos.

Hoje, ninguém duvida que para garantir o direito à cidade sustentável, a política de desenvolvimento urbano deve criar um marco adequado que permita a participação dos cidadãos e o livre desenvolvimento de sua personalidade; que garanta a seguridade e o respeito dos direitos individuais e sociais da pessoa; que ofereça equipamentos urbanos e comunitários adequados as necessidades da população; que combata a pobreza, a incultura e, em geral, todas as causas da exclusão social, priorizando os investimentos e recursos para as políticas sociais (habitação, educação, saúde, etc.,); que promova a proteção dos valores históricos, culturais e ambientais da cidade; que incentive as atividades econômicas e sociais que resultem na melhoria da qualidade de vida; que evite, no possível, a especulação imobiliária e a utilização inadequada dos imóveis urbanos.

Na atual situação de incessante crescimento demográfico dos centros urbanos, de retenção especulativa de terrenos nas melhores zonas das cidades, de assentamentos humanos irregulares e desordenados que, carecendo dos serviços públicos mais elementares, apresentam condiciones precárias de higiene, educação e saúde, de áreas urbanas degradadas por os usos inadequados e a poluição ambiental, só o Poder Público pode oferecer alguma solução global e planificada que tome em consideração a cidade como um conjunto. Só mediante una decidida intervenção pública, amparada pela legalidade constitucional, poderá ser roto o profundo desequilíbrio existente em Brasil entre uma minoria qualificada que desfruta de serviços urbanos de qualidade e uma maioria com condições urbanísticas precárias. Somente assim se conseguirá diminuir as diferencias existentes entre a porção da cidade “legal, rica e com infra-estrutura e a ilegal, pobre e precária”, cujos moradores estão em situação tão desfavorável que nem tem acesso às oportunidades de trabalho, cultura ou lazer.