10 de agosto de 2009

Política urbana no Brasil: III. Constituição Federal de 1988 e Estatuto da Cidade



Ainda que a Constituição garanta que a propriedade é um direito fundamental no caput do artigo 5º, tornou a função social um imperativo do direito de propriedade privada e um princípio geral da ordem econômica. Com efeito, o artigo 5º, XXIII estabelece que “a propriedade atenderá a sua função social”, e o artigo 170, depois de declarar que a ordem econômica se funda-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, impõe a observação, entre outros, dos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade.

Não bastasse isso, a Constituição Federal pela primeira vez na história do Brasil, tomou em consideração de forma orgânica e global os problemas sociais e jurídicos da vida urbana, especialmente agudos nas cidades grandes e nas de meio porte, em Capítulo intitulado “Da Política Urbana”, dentro dos dispositivos referidos à ordem econômica e financeira.

Os eixos sobre os quais a Carta Magna constrói a política urbana são os seguintes:
  • a) subordinação da propriedade urbana ao cumprimento de sua função social, impondo inclusive o parcelamento e a edificação compulsória dos terrenos urbanos não edificados;
  • b) definição e concretização legal pela União das diretrizes gerais da política urbana;
  • c) previsão de utilização geral da desapropriação com fins urbanísticos;
  • d) atribuição ao Poder Público municipal a competência básica para definir a política de desenvolvimento urbano de cada cidade, com a finalidade de alcançar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes;
  • e) utilização do planejamento urbanístico, particularmente do plano diretor, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana;
  • f) instituição da usucapião especial no solo urbano para fins de moradia.

Com efeito, no caput do artigo 182 dispõe a Carta constitucional que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”, ainda que determinar quais sejam essas funções é uma pergunta de difícil resposta. Assim mesmo, o § 2º determina que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, que conforme o § 1º do artigo, “é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.

Além disso, no § 3º, é faculdade da Administração desapropriar imóveis urbanos por causa de interesse público, com prévia e justa indenização em dinheiro; e, no § 4º, é facultado o Poder Público municipal para “exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento”, sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação sanção com pagamento mediante títulos da dívida pública.

Por derradeiro, no artigo 183, dispõe que “aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

O Congresso Nacional, conforme o mandato da Carta Magna, elaborou uma lei inspirada nos precedentes anteriores para regular o desenho e a execução da política urbana, a Lei Federal 10.257/2001, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, à qual denominou expressamente Estatuto da Cidade, visando estabelecer as “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (art. 1º).

Salienta Edésio Fernández, que a nova lei que consolidou a ordem constitucional quanto ao controle jurídico do processo de desenvolvimento urbano, visando reorientar a ação do poder público, do mercado imobiliário e da sociedade conforme novos critérios econômicos, sociais e ambientais, tem quatro dimensões fundamentais, quais sejam:
  • a) consolida a noção da função social e ambiental da propriedade e da cidade como o marco conceitual jurídico‑político para o Direito Urbanístico;
  • b) regulamenta e cria novos instrumentos urbanísticos para a construção de uma ordem urbana socialmente justa e inclusiva pelos municípios;
  • c) aponta processos político‑jurídicos para a gestão democrática das cidades;
  • d)propõe instrumentos jurídicos para a regularização fundiária dos assentamentos informais em áreas urbanas.
Assim sendo, o Estatuto da Cidade, depois de declarar que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” (art. 2º), determina que para os fins da lei serão utilizados, entre outros instrumentos jurídicos, os institutos da desapropriação, das servidões e limitações administrativas; a concessão de uso especial para fins de moradia; a usucapião especial de imóvel urbano; o direito de superfície; e, o direito de preempção. Portanto, dá suporte jurídico à ação dos governos municipais para buscar solução às graves questões urbanas, sociais e ambientais que afetam a viva da enorme parcela de brasileiros que habitam nas cidades.

A Lei desenha os instrumentos de política urbanística que quadram ao poder municipal para conseguir o melhor desenvolvimento da cidade e a mais ordenada expansão urbana, para administrar melhor as reserva fundiárias do Município e os terrenos desapropriados, para contribuir a regular o mercado imobiliário, para facilitar o desenho e a execução do planejamento urbanístico, para garantir a utilização mais adequada do solo urbano e, no caso, para promover a regularização fundiária ou a construção de moradias sociais. Quer dizer, a diferença essencial entre as normas ordinárias e as normas urbanísticas, não radica no diferente valor jurídico de ambas, senão na sua finalidade. As normas do Estatuto da Cidade tem que ser interpretadas e aplicadas respeitando as diretrizes fixadas nele próprio (art. 2º), garantindo, entre outras coisas, direito a cidades sustentáveis, gestão democrática da política urbana, equipamentos urbanos adequados, ordenação e controle do uso do solo urbano, proteção do patrimônio cultural e do meio ambiente, justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes da urbanização e recuperação pelo Poder Público de uma parte das mais-valias urbanísticas. Porém, garantindo a isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização e edificação, atendido sempre o interesse social. É aí aonde tem cabida a legislação civil comum, cujos dispositivos estão orientados pela idéia básica da isonomia.

Deste modo, a integração normativa do Estatuto da Cidade, que é uma lei especial que consagra um micro-sistema jurídico, com o resto do ordenamento jurídico têm que ser absolutamente respeitosa da função social da propriedade do solo urbano garantida na Constituição e detalhada na lei urbanística. Não se esqueça que o Estatuto da Cidade estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental. Ainda mais, a propriedade urbana somente cumpre sua função social, quando atende às exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no plano diretor. Porém, no caso de existir normas conflitantes com o Código Civil, que tenham a finalidade de regulamentar relações de Direito privado em cuja criação intervenha a livre e espontânea vontade das partes, será aplicável preferentemente a lei civil, independentemente de sua utilização como direito supletivo caso de existir lagunas na legislação urbanística.

O mais adequado, portanto, é pensar que ambas as regulamentações se integram em um tudo orgânico, o ordenamento jurídico brasileiro, e em conseqüência, deve proceder uma interpretação sistemática, única, conjunta e integrada de todo o complexo normativo relativo a cada assunto.

É verdade que nos decênios anteriores o Código Civil, que antes ocupava um lugar central no ordenamento jurídico privado com valor praticamente constitucional, passou a converter-se num elemento a mais de um ordenamento jurídico complexo e fragmentário. Junto ao Código Civil surgiu uma variada legislação especial, destinada a regular distintos aspectos das relações jurídicas, que com nova linguagem e lógica distinta, criou abundantes antinomias com o Direito codificado. Essas novas normas jurídicas, que encontraram sua fonte na legislação especial, se caracterizam por ser instrumentos de engenharia social que o Estado utilizou para atuar em concreto a "justiça social" e para proteger determinados interesses sociais.

Quer dizer, o Direito privado passou de ser um "mono-sistema" jurídico centrado no Código Civil, no qual as normas aparecem como partes integrantes de um todo orgânico e sistemático, a converter-se em um "poli-sistema", no qual ganham autonomia própria distintos micro-sistemas normativos em torno de leis especiais que concretizam, para cada setor, a nova valoração social dos interesses em jogo e as formas da intervenção pública para efetuar sua tutela. Dito muito graficamente com Natalino IRTI, aconteceu uma decodificação do Direito civil. Destarte, o Código deixou de ser “o sistema” por excelência do Direito privado e terminou convertendo-se em mais um dos sistemas integradores do ordenamento jurídico.

Esta nova técnica legislativa, da qual é expressão o Estatuto da Cidade, surgiu para enfrentar as novas realidades e os novos problemas jurídicos. É expressão normativa da complexidade social, econômica e política da vida contemporânea e traduz as mudanças e as transformação dos valores e princípios caracterizadores da organização social atual. Por isso, se desenvolve em torno às normas, princípios e valores próprio do atual Estado social y democrático de Direito. Tais estatutos, que freqüentemente encontraram sua origem direta no desenvolvimento dos próprios dispositivos constitucionais, regulam diversos setores da economia e cuidam de inteiras áreas de atuação do Direito, criando novos ramos independentes disciplinados por regras, não só de Direito civil, mas também de outras disciplinas jurídicas, especialmente de Direito administrativo. Neste sentido o Estatuto da Cidade já está impulsionando vigorosamente um novo ramo jurídico chamado a alcançar no futuro um grande desenvolvimento, o Direito Urbanístico.

Mas ninguém deve esquecer que a idéia dos micro-sistemas está calçada de uma situação concreta na qual as leis especiais que originam e conformam estes novos micro-sistemas jurídicos são sempre posteriores ao Código Civil, que, além disso, está completamente alheio aos princípios constitucionais que inspiram os corpus normativos formados pelas leis especiais. Portanto sua autonomia, à margem do Código Civil, apóia-se tanto em sua integração no sistema constitucional vigente, como nos princípios de especialidade e posterioridade.

Atualmente, no Direito brasileiro não se dá esta situação, bem ao contrário. O novo Código Civil é posterior à Constituição e, praticamente, à todas as leis especiais vigentes, incluído o Estatuto da Cidade. Além disso, não cabe duvida que os princípios fundamentais que inspiram o novo Código em matéria patrimonial podem considerar-se, formal e materialmente, conformes com a atual Carta Magna, especialmente em matéria de função social da propriedade e do contrato. Portanto, ninguém pode argumentar que, via de regra, o Código Civil vigente, por mais que seja resultado de um processo iniciado nos anos setenta, por mais que assuma conceitos, regras e princípios de Direito patrimonial consagrados no velho Código de 1916, não respeita os valores, princípios e normas constitucionais.

Além disso, deve lembrar-se que embora o Estatuto da Cidade é norma com conteúdo predominante de Direito público, isso não impede que afete substancialmente à regulação do contrato, da propriedade e vários direitos reais contemplados no Código Civil. Quer dizer, a apesar de considerar o Estatuto da Cidade fundamentalmente como normativa de Direito Público, isso não significa que todo seu conteúdo se refira a esse setor do ordenamento jurídico. Em concreto, a desapropriação, as limitações ao direito de propriedade por razões urbanísticas, as servidões ainda que administrativas, o direito real de uso, a usucapião, o direito de superfície, o direito de preempção, a transferência do direito a construir, e as operações urbanas consorciadas não podem ser completamente entendidas nem aplicadas sem o apoio nas normas civis.

Entretanto, existem matizes particulares na regulação especial urbanística muito além das normas de Direito privado que não da para esquecer, bem em razão às características do objeto sobre a qual recai, o solo urbano, bem em razão de natureza pública de seu principal destinatário, o Poder Público municipal, bem na função ou finalidade econômico-social chamada a cumprir, isto é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais de cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Matizes e particularidades que, embora não modificam a natureza essencial dos instrumentos jurídicos utilizados na gestão urbanística, sim introduzem especialidades no seu concreto regime jurídico.

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