10 de agosto de 2009

Política urbana no Brasil: II. Precedentes


Em Brasil, fatos novos aconselharam novas formas do uso do solo urbano, redefinindo o conteúdo do direito de propriedade imobiliária em função da necessidade premente de regulamentar e ordenar o assentamento humano nas cidades.

Esses fatos, conforme resume concisamente Ricardo Pereira Lira, são basicamente os seguintes:

  • excessivo crescimento da população urbana, em decorrência da industrialização;

  • assentamento dessa população nas cidades de maneira inteiramente desordenada, sem qualquer planejamento e racionalidade;

  • assentamento da população de forma iníqua, realizando se esse assenta­mento sob o domínio da chamada segregação residencial, por força da qual às chamadas populações carentes e de baixa renda são destinadas as periferias do espaço urbano, em condições de vida as mais dilacerantes, recebendo as áreas de rendi­mento mais alto os maiores investimentos públicos;

  • considerável atividade especulativa, em que os donos do solo urbano, utilizando a sua faculdade de não uso, criam um banco de terras em seu benefício, aguardando o momento de, pela alienação das glebas estocadas, locupletar se com as mais-valias resultantes dos investimentos de toda comunidade.


Todos estes dados concorrem de forma irrefragável para demonstrar a evidente necessidade de uma nova política urbanística de envergadura, à base da qual esteja uma concepção renovada da propriedade imobiliária.

A Carta de Embu

Em vista da situação, contemporaneamente al impulso legislativo dos paises europeus no intento de redefinir o direito de propriedade imobiliária e de conformar umas condições jurídicas que garantissem o interesse coletivo no desenvolvimento urbano, surgiu um clamor em pro da transformação da precária situação urbanística brasileira, inspirado por técnicos e juristas estudiosos do urbanismo e presidido pela idéia da desagregação do direito de construir do conteúdo do direito de propriedade.

Na verdade, o valor da propriedade urbana não depende diretamente das qualidades do terreno, senão do uso que o proprietário lhe pode dar em virtude de sua inserção no contexto da cidade. A possibilidade de o solo ser utilizado como suporte da edificação não é so decorrente de atuação do proprietário. O potencial urbanístico dum terreno depende da existência de uma infra-estrutura urbana criada, na maioria das ocasiões, com recursos públicos e privados alheios ao proprietário. Como adverte Eros Roberto Grau, o acréscimo de valor do solo urbano, “não é produto de nenhuma aplicação de capital ou de trabalho por parte do proprietário individual, resultando da ação conjugada do setor privado –como um todo- e do setor público, ou seja, da comunidade” .

O fulcro do debate doutrinário sobre o novo conceito do direito da propriedade imobiliária foi a chamada Carta de Embu, que ainda hoje conserva grande interesse e atualidade. Este documento, datado em 11 de dezembro de 1976, foi subscrito por eminentes urbanistas e juristas (Álvaro Villaça Azevedo, Celso Antônio Bandeira de Melo, Dalmo do Valle Nogueira Filho, Eros Roberto Grau, Eurico de Andrade Azevedo, Fábio Fanucchi, José Afonso da Silva, Maria Lourdes Cesarino Costa, Mario Pazzaglini Filho, Miguel Seabra Fagundes, Jorge Hori, Antônio Claudio Moreira Lima, Clementina De Ambrosis, Domingos Theodoro de Azevedo Netto, Luiz Carlos Costa e Norberto Amorim), e assim se manifesta:

"Considerando que, no território de uma cidade, certos locais são mais favoráveis à implantação de diferentes tipos de atividades urbanas;

Considerando que a competição por esses locais tende a elevar o preço dos terrenos e a aumentar a densidade das áreas construídas;

Considerando que a moderna tecnologia da construção civil permite intensificar a utilização dos terrenos, multiplicando o número de pavimentos pela ocupação do espaço aéreo ou do subsolo;

Considerando que esta intensificação sobrecarrega toda a infra estrutura urbana, a saber, a capacidade das vias, das redes de água, esgoto e energia elétrica, bem assim a dos equipa­mentos sociais, tais como, escolas, áreas verdes etc.;

Considerando que essa tecnologia vem ao encontro dos desejos de multiplicar a utilização dos locais de maior demanda, e, por assim dizer, permite a criação de solo novo, ou seja, de áreas adicionais utilizáveis, não apoiadas diretamente sobre solo natural;

Considerando que a legislação de uso do solo procura limitar este adensamento, diferenciadamente para cada zona, no interesse da comunidade;

Considerando que um dos efeitos colaterais dessa legislação é o de valorizar diferentemente os imóveis, em conseqüência de sua capacidade legal de comportar área edificada, gerando situações de injustiça;

Considerando que o direito de propriedade, assegurado na Constituição, é condicionado pelo principio da função social da propriedade, não devendo, assim, exceder determinada extensão de uso e disposição, cujo volume é definido segundo a relevância do interesse social;

Admite se que, assim como o loteador é obrigado a entregar ao poder público áreas destinadas ao sistema viário, equipamentos públicos e lazer, igualmente, o criador de solo deverá oferecer à coletividade as compensações necessárias ao re-equilíbrio urbano reclamado pela criação do solo adicional, e

Conclui se que:

1. É constitucional a fixação, pelo município, de um coeficiente único de edificação para todos os terrenos urbanos.

1.1 A fixação desse coeficiente não interfere com a competência municipal para estabelecer índices diversos de utilização dos terrenos, tal como já se faz, mediante legislação de zoneamento.

1.2 Toda edificação acima do coeficiente único é considerada solo criado, quer envolva ocupação de espaço aéreo, quer a de subsolo.

2. É constitucional exigir, na forma da lei municipal, como condição de criação de solo, que o interessado entregue ao poder público áreas proporcionais ao solo criado; quando impossível a oferta destas áreas, por inexistentes ou por não atenderem às condições legais para tanto requeridas, é admissível sua substituição pelo equivalente econômico.

2.1 O proprietário de imóvel sujeito a limitações administrativas, que impeçam a plena utilização do coeficiente único de edificação, poderá alienar a parcela não utilizável do direito de construir.

2.2 No caso do imóvel tombado, o proprietário poderá alienar o direito de construir correspondente à área edificada ou ao coeficiente único de edificação”.


B) O Projeto de Lei 775/1983

Surgido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, órgão do Ministério do Interior responsável pela proposição e implantação da Política Nacional de Desenvolvimento, o projeto de Lei 775/1983 se tramitou no Congresso Nacional até 1988, quando da promulgação da nova Constituição.

Com esta iniciativa o Executivo Federal apresentou ao Poder Legislativo o primeiro projeto de lei que tinha por objetivo estabelecer normas especiais voltadas à política urbana. Tal ação teve por fundamento a idéia de que era necessária a regulamentação explicita das relações urbanas nas cidades brasileiras, vez que até aquele momento a maioria da legislação de policia urbana existente fora editada para uma sociedade eminentemente rural.

Se tratava, portanto, de dar novo enfoque ao regime da propriedade urbana, já que a Constituição Federal de 1967, conforme Emenda Constitucional de 17.10.1969, exigia que a propriedade atendesse à sua função social. Com efeito, o art. 160, III, dispunha que “a ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social”, com base no princípio da “função social da propriedade”. De fato, o direito de propriedade permanecia garantido constitucionalmente no art. 153, § 22, salvo os casos de desapropriação e de perigo público iminente, ressalva a certeza da indenização correspondente. Porém, a propriedade passou a ter novas conotações. O proprietário devia utilizar se de seu bem de forma a atender à função social, vez que tal diretriz é uno dos princípios da ordem econômica e social e fator de desenvolvi­mento e de justiça social.

Destarte, este projeto de Lei pretendeu concretizar e definir legalmente a função social da propriedade imobiliária. Para tanto, propunham se as seguintes diretrizes: igualar as oportunidades de acesso à propriedade urbana e à moradia; distribuir eqüitativamente os benefícios e ônus decorrentes da urbanização; consertar as distorções de valorização da propriedade urbana e recuperar as mais valias para a coletividade; proceder à regularização fundiária das áreas ocupadas por população de baixa renda; e a adequar às normas urbanísticas que regulamentam a faculdade de edificar. Assim sendo, a idéia central do projeto era a de dotar a Administração Pública de condições e instrumentos de atuação mais justos e eficazes para ordenar o meio urbano.

Para conseguir estes objetivos, o projeto de lei criava novos instrumentos jurídicos e administrativos que permitiam efetivar a implementar as ações urbanísticas necessárias. Entre outros, estavam previstos o parcelamento, edificação e utilização compulsórios, o direito de preempção em favor do Poder Público, o direito de superfície e o direito de transferência de potencial construtivo para garantir a preservação do patrimônio urbanístico, artístico, arqueológico e paisagístico, bem como para a implantação de equipamentos urbanos e comunitários.

No campo da participação popular, o projeto previa uma ativa ação fiscalizadora da população interessada no sentido de conferir o cumprimento dos dispositivos estabelecidos, podendo qualquer cidadão ou associação exigir a suspensão de atividades tendentes à ocupação ou uso indevido dos imóveis urbanos.

Em resume, para este projeto de Lei o desenvolvimento urbano consistia, basicamente, na solução de problemas relacionados às distorções do crescimento urbano; ao atendimento da função social da propriedade; ao uso adequado do solo urbano; aos investimentos que resultassem na valorização dos imóveis urbanos; ao estabelecimento de política fiscal e financeira que sustentasse as ações necessárias e, também, à participação da iniciativa privada nos processos de urbanização.

Ainda que anteriormente competia ao governo local a organização da cidade, já que podia resolver em solitário seus problemas de ordem urbanístico, o desmedido crescimento urbano ocasionou novos problemas que não comportavam mais soluções exclusivamente locais. Os assuntos urbanísticos passaram a exigir atuação não apenas da entidade local, mas de todos os entes federados em matéria de urbanismo. Nesta seara, ainda que a intenção não era nada afortunada, o Projeto de Lei 775/1983, tinha a intenção de criar um "sistema nacional de cidades" com desenho comum para todas as cidades do país, em vez de limitar-se a criar as condições mínimas suficientes para garantir a cada Município a possibilidade de organizar a cidade atendendo a suas características particulares e ao bem estar geral.

Na época, a proposta legislativa recebera inúmeras criticas e sugestões de alteração, especialmente de entidades privadas vinculadas ao setor imobiliário. A polemica referia se, basicamente a duas questões: À constitucionalidade de alguns dos dispositivos alvitrados, por entender que eram atentados à garantia da propriedade; e, ao debate, agora completamente superado, sobre a competência da União para legislar sobre urbanismo e desenvolvimento urbano.

Atualmente é justo reconhecer que este projeto teve o mérito de perfilhar um conjunto de medidas técnicas e instrumentos jurídicos voltados para adequar o exercício da propriedade urbana com os interesses coletivos. Destarte ficaram estabelecidas as bases teóricas, jurídicas e urbanísticas, para a feliz gestação do Estatuto da Cidade.

Após a promulgação da Constituição de 1988, o deputado Raul Ferraz, propôs um projeto de lei substitutivo, o Projeto de Lei 2.191/1989, que, foi o primeiro adaptado às novas normas constitucionais, especialmente àquelas referentes ao plano diretor e às competências dos Municípios em matéria urbanística. Entre os principais dispositivos propunha, além da criação de institutos tributários (contribuição urbanística e taxa de urbanização) e de outros instrumento urbanísticos, tais como a requisição de imóvel urbano para loteamento ou urbanização, com reintegração do imóvel ao devidamente urbanizado, e o instituto da reurbanização consorciada uma medida que ainda subsiste sob o manto do Estatuto da Cidade: a usucapião especial de imóvel urbano coletivo utilizado para moradia, que permitiria a aquisição imobiliária de área urbana de metragem superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados ocupada por edificações precárias e mediante a posse ininterrupta e sem oposição.



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