10 de agosto de 2009

Política urbana no Brasil: I. Introdução


Em geral a cidade, assim que aglomeração humana, sempre foi objeto de um regime de organização. Por isso, pode dizer-se que plano urbanístico, mais ou menos difuso, existiu sempre (localização de prédios públicos, desenho de ruas e praças, alinhamentos de edifícios, etc.). Entretanto, são as novas condições da vida urbana, que começam com a revolução industrial e o êxodo rural, as que impõem a exigência de planejar o crescimento e o desenvolvimento das cidades e as que propriamente fazem surgir a política urbana como técnica nova, com instrumentos e métodos próprios. Assim sendo, à margem de toda concepção ideológica ou política, surge a necessidade de estabelecer uma efetiva direção pública da atividade urbanística fundamentada no planejamento. As necessidades criadas pelo desenvolvimento do processo urbanizador, exigem a os poderes públicos interveir no mesmo, mediante técnicas jurídicas cada vez mais sofisticadas e complexas. Basta observar os ordenamentos jurídicos afins para comprovar que a intervenção dos poderes públicos assume cada vez mais protagonismo na tarefa da ordenação e o planejamento da atividade urbanística.

As conseqüências da intervenção pública na ordenação urbana trasladam-se de modo imediato ao regime jurídico da propriedade privada do solo, pois, ao reconhecer o valor coletivo da cidade, protegem-se os interesses sociais e condiciona-se a iniciativa e a liberdade dos proprietários para urbanizar e edificar conforme sua exclusiva conveniência. Como assinalou o grande jurista francês Gabriel Marty faz meio século, numa intervenção que ja se considera clássica, “a propriedade privada, caracterizada por seus atributos tradicionais usus, fructus, abusus, encontra-se grandemente afetada e inclusive transformada a conseqüência deste empenho legislativo pelo qual se expressam dentro deste campo a autoridade pública e os intuitos coletivos”.

As manifestações concretas da ordenação urbana no processo de transformação do regime jurídico da propriedade imobiliária, em essência, saõ simples e bem conhecidas. Inicialmente a intervenção pública organizou-se mediante disposições jurídicas muito variadas, a maioria de origem municipal, que rtinham finalidades concretas e específicas: situação de prédios públicos, desenho de praças, ruas e avenidas, higiene e esgoto, estética e ornato, razões militares, etc. Entretanto, a partir da segunda metade do século XX, as normas de intervenção no espaço urbano chegaram a alcançar um certo grau de unidade orgânica nas leis gerais de urbanismo, proporcionando, a partir desse momento, importantes argumentos para falar de uma propriedade urbana ou urbanística claramente diferenciada do regime geral da propriedade inmobiliaria estabelecido até então pelo Código civil.

Neste contexto, a disciplina da propriedade fixada nos Códigos civis, de uma forma ou outra, servia para integrar no esquema conceptual do domínio privado as limitações derivadas das normas urbanística. Os proprietários eram, assim, os principais protagonistas do processo urbanístico. A atividade de transformar o solo por edificação era considerada um direito subjetivo do proprietário do terreno.

Conforme o artigo 552 do Código Napoleão, “la propriété du sol emporte la propriété du dessus et du dessous, e “lê proprietaire peut faire au-dessus toutes lês plantations et constructions qu’il juge à propôs, saufs les exceptions établies au titre des Servitudes ou Services fonciers.

Nesta seara, o artigo 572 do Código Civil brasileiro de 1916, que surpreendentemente é reproduzido nos próprios términos pelo artigo 1.299 do novo Código Civil, determinava: “o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos”. Do conteúdo deste dispositivo bem pode extrair-se a idéia de que “a liberdade de construir é a regra”, e “as restrições e limitações ao direito de construir formam as exceções, e, assim sendo, só são admitidas quando expressamente consignadas em lei ou regulamento”.

Além disso, o marco jurídico general no qual se produz este fenômeno estava presidido por um sistema constitucional que partia do inamovível dogma da existência de uma garantia pétrea da propriedade privada frente aos ataques e intromissões do poder público. Com esta perspectiva claramente garantista se foi desenvolvendo um corpus de normas de polícia urbana organizado sobre a técnica urbanística básica dos alinhamentos de vias públicas, que chegaria a constituir, junto com os tradicionais regulamentos administrativos de construção, o núcleo fundamental do ordenamento urbanístico até a promulgação das grandes leis urbanísticas europeias, já entrada a segunda metade do século XX, e se completava com a técnica da desapropriação do solo para a realização de obras dirigidas a criar espaços de uso coletivo e edifícios públicos. Por isso, se observar panorâmicamente a legislação municipal brasileira, que se desenvolve na segunda metade do século XIX, comprova-se facilmente que é fragmentária e insuficiente para resolver os graves problemas surgidos nas aglomerações urbanas, e também, que contribui com poucas soluções novas e eficazes para dar resposta aos crescentes problemas derivados do crescimento desordenado das cidades.

Atualmente, este esquema ficou substancialmente modificado. As decisões básicas sobre a política urbana e sobre a transformação da cidade foram dissociadas do direito de propriedade do solo, para ser atribuídas a o Poder Público que é responsável pela ordem coletiva. As limitações urbanística já não se ressumem no alinhamento e nivelamento das ruas, nas imposições de altura, volume e estilo dos edifícios nas áreas edificáveis ou nas normas sobre loteamentos.

Hoje, ninguém duvida que para garantir o direito à cidade sustentável, a política de desenvolvimento urbano deve criar um marco adequado que permita a participação dos cidadãos e o livre desenvolvimento de sua personalidade; que garanta a seguridade e o respeito dos direitos individuais e sociais da pessoa; que ofereça equipamentos urbanos e comunitários adequados as necessidades da população; que combata a pobreza, a incultura e, em geral, todas as causas da exclusão social, priorizando os investimentos e recursos para as políticas sociais (habitação, educação, saúde, etc.,); que promova a proteção dos valores históricos, culturais e ambientais da cidade; que incentive as atividades econômicas e sociais que resultem na melhoria da qualidade de vida; que evite, no possível, a especulação imobiliária e a utilização inadequada dos imóveis urbanos.

Na atual situação de incessante crescimento demográfico dos centros urbanos, de retenção especulativa de terrenos nas melhores zonas das cidades, de assentamentos humanos irregulares e desordenados que, carecendo dos serviços públicos mais elementares, apresentam condiciones precárias de higiene, educação e saúde, de áreas urbanas degradadas por os usos inadequados e a poluição ambiental, só o Poder Público pode oferecer alguma solução global e planificada que tome em consideração a cidade como um conjunto. Só mediante una decidida intervenção pública, amparada pela legalidade constitucional, poderá ser roto o profundo desequilíbrio existente em Brasil entre uma minoria qualificada que desfruta de serviços urbanos de qualidade e uma maioria com condições urbanísticas precárias. Somente assim se conseguirá diminuir as diferencias existentes entre a porção da cidade “legal, rica e com infra-estrutura e a ilegal, pobre e precária”, cujos moradores estão em situação tão desfavorável que nem tem acesso às oportunidades de trabalho, cultura ou lazer.


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