10 de agosto de 2009

Política urbana no Brasil: IV. Princípios e instrumentos jurídicos


Para poder compreender de forma simples e adequada a profunda transformação da propriedade imobiliária e, inclusive, no próprio conceito do domínio privado tras vigorar o Estatuto da Cidade, convém individualizar os princípios que inspiram esta Lei e as idéias motrizes que inspiram suas normas.

O ponto de partida para sintetizar estas idéias, é considerar que o Estatuto da Cidade é, essencialmente, uma lei ordinária que contém normas jurídicas de natureza urbanística dirigidas a regular o uso da propriedade urbana, em desenvolvimento dos princípios constitucionais. Para isso estabelece uma série de princípios ou diretrizes gerais que inspiram a política urbana e que, através do planejamento normativo da cidade, tratam de conseguir que o financiamento de parte substancial dos custos do processo de desenvolvimento urbano produzidos pela implantação de equipamentos coletivos, pela conservação das características singulares da cidade representadas por os valores históricos, culturais ou ambientais dela, pela ampliação da rede de serviços públicos, pelo traçado de novas vias de comunicação e a abertura de espaços livres, pela urbanização de novas zonas residenciais, corra a cargo dos proprietários privados do solo, na medida que estes se beneficiam do aumento do valor dos terrenos derivados das melhoras experimentadas pela cidade. Em conseqüência, a propriedade do solo fica afetada a tal fim por uma série de deveres e limitações que encontram seu fundamento em um sistema de ordenação urbana cuidadosamente planejado e com finalidade contraespeculativa. Portanto, tem que ser destacado o caráter normativo e ordenador da Lei e, em sua virtude, do planejamento urbanístico que se cria e se desenvolve a seu amparo. O corolário deste dobro caráter normativo vem dado, logicamente, pelas conseqüências que o Estatuto da Cidade e os planos aprovados de conformidade com ele, estabelecem em relação com o direito de propriedade privada do solo.

Com maior precisão, se podem destacar três idéias fundamentais, intimamente ligadas, que constituem um perfeito resumo dos princípios materiais inspiradores do Estatuto da Cidade, e que bem podem servir de ponto de referência para sua análise.

A primeira destas idéias é simples, mas encerra e condensa em si mesma toda a força inovadora da normativa urbanística em seu aspecto técnico: a idéia básica da política urbana é a de Plano, que quando existe possui uma indubitável eficácia normativa. A lei que instaura o plan urbanístico é eficaz e vinculante para os particulares e para os órganos da Administração. O planejamento urbanístico adquire caráter normativo e se constitui no eixo em torno do qual se articula toda ordenação urbana. É, em conseqüência, a base necessária e fundamental da ordenação da cidade.

A segunda idéia, inseparável da anterior, está profundamente ligada a ela: o urbanismo se converteu rigorosamente em função pública. A lei urbanística, reconhece o papel fundamental do Município na formulação do planejamento urbano e na gestão do processo de urbanização das cidades. Utilizando palavras do eminente professor Eduardo García de Enterría, quando comentava a primeira Lei do Solo espanhola de 1956, pode reconduzir-se todo o sistema do Estatuto “ao princípio essencial da qualificação do urbanismo como uma função pública exclusiva, estritamente tal. Seria neste sentido o último passo da idéia primitiva do planejamento e da direção pública da atividade urbanística”. O passo consiste, dito singelamente, “em privar à propriedade de todas as expectativas urbanísticas e em considerar estas como derivadas diretamente do plano, em lugar de entender que o plano devia reduzir-se a limitar as expectativas urbanísticas que sustantivamente emanassem da propriedade mesma”. Portanto, poder-se-ia afirmar que em Brasil a partir do Estatuto da Cidade o urbanismo, ou melhor a ordenação urbana, é um dos principais elementos da ordenação do território e uma autêntica função pública.

Daqui deriva a terceira das ideia centrais que sustenta o Estatuto da Cidade: efetiva uma transformação da propriedade de singular trascendencia, que até supõe um novo conceito de propriedade. Em conseqüência, pode-se dizer que as normas urbanísticas não restringem ocasionalmente a propriedade, mas sim definem o conteúdo normal do domínio.

Ficam assim, perfeitamente individualizados, os três princípios fundamentais em torno dos quais se estrutura o EC:

  • o urbanismo fica configurado como uma autêntica função pública;
  • o plano, particularmente o plano diretor, se situa como nervo de toda a ordenação urbanística;
  • opera-se uma transformação no conceito e no regime do domínio privado, que se conecta com a idéia da função social da propriedade, que conduz a um peculiar regime urbanístico do solo.

Não obstante, esta demarcação dos princípios essenciais do Estatuto, é possível expor um elenco ainda mais amplo e circunstanciado das idéias inspiradoras da citada lei, já que estão expressamente definidas no artigo 2º. Este preceito determina que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II - gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

III - cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;

IV - planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;

V - oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;

VI - ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;

b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;

c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana;

d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;

e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização;

f) a deterioração das áreas urbanizadas;

g) a poluição e a degradação ambiental;

VII - integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;

VIII - adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência;

IX - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;

X - adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais;

XI - recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos;

XII - proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;

XIII - audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;

XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;

XV - simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;

XVI - isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.

Em conclusão, pode dizer-se que se produz uma substancial modificação do regime jurídico da propriedade do solo através do reconhecimento de sua função social, que pode ser condensada do modo seguinte:

  1. O conteúdo do direito de propriedade imobiliária, e conseguintemente o aproveitamento urbanístico das parcelas, dependerá de sua qualificação urbanística determinada no plano diretor (coeficiente de aproveitamento, possibilidade de alteração de uso do solo, limite de edificabilidade, contrapartidas do proprietário, etc.);

  2. O exercício das faculdades do direito de propriedade deverá ser conforme com as disposições do Estatuto da Cidade e as contidas no plano diretor e no resto do planejamento municipal aprovado conforme os dispositivos legais;

  3. A ordenação de uso dos terrenos e construções prevista no Estatuto da Cidade e no planejamento urbanístico estabelecido a seu amparo, não conferirá aos proprietários direito a exigir indenização, por implicar meras limitações e deveres que definem o conteúdo normal da propriedade imobiliária segundo sua qualificação urbanística;

  4. A comunidade participará das plusvalias geradas pelo processo de urbanização e recuperará os investimentos efetuados pelo Poder Público;

  5. Existirá possibilidade de o Município valer-se da desapropriação, já seja desapropriação urbanística ordinária, já seja desapropriação-sanção por descumprimento do dever de edificação ou parcelamento compulsório, como complemento e instrumento de fechamento do sistema ordenador da propriedade urbanística.


En quanto aos instrumentos da política urbana, para os fins do Estatuto da Cidade, serão utilizados, entre outros, já que a lei deixa aberta a possibilidade de que a Administração Pública utilize qualquer outro instrumento nela no previsto expressamente, instrumentos de planejamento, institutos tributários e financeiros, institutos jurídicos e políticos e estudos prévios de impacto ambiental (EIA) e de vizinhança (EIV) (artigo 4º)

Os instrumentos de planejamento previstos na lei podem ser de caráter supra-municipal, sejam planos nacionais, estaduais e regionais de ordenação do território, e de caráter municipal. Porém é o planejamento municipal, integrado especialmente por o plano diretor com força normativa, o que represente o maior destaque. Junto ao plano diretor se contemplam outros instrumentos de planejamento complementares como a disciplina do parcelamento, uso e ocupação do solo, o plano de zoneamento ambiental, o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual, incluindo a gestão orçamentária participativa, assim como diversos planos, programas e projetos setoriais.

Também pode o Poder Público utilizar-se de institutos tributários e financeiros, tais como a contribuição de melhoria e diversos incentivos e benefícios fiscais e financeiros. Porém, se destaca entre estes instrumentos o tributo sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU), que joga importante papel no regime legal de parcelamento, edificação ou utilização compulsória da propriedade urbana, adotando forma progressiva nos casos de descumprimento do dever de urbanizar o edificar.

Em quanto aos institutos jurídicos o legislador vale-se de figuras tradicionais como a desapropriação, as servidões e limitações administrativas e o tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano. Introduz outros novos, como o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsória do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, a outorga onerosa do direito de construir, a transferência do direito de construir, a criação de unidades de conservação ou de zonas especiais de interesse social, as operações urbanas consorciadas e a regularização fundiária. E por derradeiro, atribui uma nova função urbanística a institutos jurídicos tradicionais como a concessão de direito real de uso o de uso especial para fins de moradia, a usucapião especial de imóvel urbano, o direito de superfície e o direito de preempção.

Dentre estes institutos, merecem especial destaque a desapropriação, que jogará além da função tradicional, uma nova função de desapropriação-sanção nos casos de descumprimento do dever de parcelar ou edificar; a Usucapião Especial de Imóvel Urbano, individual ou coletiva, visada a garantir a habitação a os posseiros de áreas urbanas que estejam utilizando-as para sua moradia por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, e que não tenham outro imóvel; o Direito de Preempção, que outorga ao Poder Público preferência para adquirir os imóveis urbanos objeto de alienação onerosa entre particulares; e, particularmente, o denominado solo criado.

“Considera-se solo criado -segundo precisa definição do Hely Lopes Meirelles- toda área edificável além do coeficiente único de aproveitamento do lote, legalmente fixado para o local. O solo criado, ensina este autor, será sempre um acréscimo ao direito de construir além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido pela lei: acima de esse coeficiente, até o limite que as normas edilícias admitirem, o proprietário não terá o direito originário de construir más poderá adquiri-lo do Município, nas condiciones que a lei local dispuser para a respectiva zona”. Portanto, este direito, que será separável do terreno e poderá ser exercido em outro local ou transmitido a terceiros, se atribuirá aos proprietários de solo, mediante contrapartida, a traves da Outorga Onerosa do Direito a Construir. O plano diretor fixará a relação entre a área edificável e a área do terreno, ou coeficiente de aproveitamento básico a que tem direito os proprietários dos terrenos urbanos, as áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima desse coeficiente e os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento.

Para completar os instrumentos previstos por o Estatuto da Cidade tem que fazer-se alusão a dos institutos jurídicos, a assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos e o referendo popular e plebiscito, que visam garantir a gestão democrática da política urbana, e os estudos prévios de impacto ambiental (EIA), já consagrado na legislação ambiental, e de impacto de vizinhança (EIV) regulado com muito detalhe.


No hay comentarios:

Publicar un comentario